segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Os
donos das chaves, histórias de instantes
Assisti, recentemente, ao
filme um beijo roubado, tradução não
muito justa para my blueberry nights, com a grande compositora,
pianista e cantora Norah Jones, estreante como atriz.
Em tempos de falta de romantismo e sutileza, o
filme apresenta personagens reais e sensíveis, com suas dúvidas e desafios,
situações comuns a todos, gente de carne e osso. Por isso mesmo, a empatia
imediata, pois os dramas das personagens parecem com de alguém próximo, que
conhecemos ou até mesmo, de nós mesmos. Tudo vai acontecendo dentro de um
cenário com mistura de cores e luzes da noite, noite normal, sem qualquer glamour fake forçado, apenas como é, somada à execução, sutil, da trilha
sonora mais que perfeita.
O entorno das paixões, escolhas
e tomadas (takes) de momentos
imediatamente após decisões tomadas pelas personagens aparecem como texto
subliminar nos momentos e instantes de cada tomada, sutil, para que o olhar de
quem vê o instante, o espectador ou a personagem, possa reconhecer e, se
reconhecer, como num espelho, buscando com os olhos, câmera olho, captar a imagem
do instante sempre revelador para quem se predispõe a ver.
As personagens do drama são
reais, portanto, tomando atitudes reais, seguindo seus corações ou não, pois
não possuem um roteiro previsível. Esse é o diferencial do filme que segue apresentando
situações de vidas, de maneira intensa, porém sem estardalhaço.
A protagonista, personagem
de Norah Jones, após término de relacionamento, dirige-se, ainda sob o efeito
daquele momento ruim, de não saber o quê fazer ou pensar, ao café e restaurante
próximo onde seu namorado tinha ido com outra mulher. Ela pensava viver uma relação perfeita. E por
um momento, ela para, buscando entender. Ela entra, senta-se, e volta o olhar
para um jarro num canto do balcão contendo muitas chaves. O olhar de Norah
Jones é muito especial e expressivo. O dono do lugar, personagem vivido pelo
talentoso ator inglês Jude Law, observa-a de longe e, inicia uma conversa sobre
os donos das chaves e suas histórias. Ela mostra-se interessada em saber o
porquê de guardar todas aquelas chaves. Para
ele, as chaves são como personagens, com suas histórias. Ele pede para que ela
escolha uma chave, e começa a contar as histórias, uma a uma, à medida que ela
vai apontando para a próxima. Ele conta histórias de pessoas comuns, suas dúvidas
e dramas vividos e compartilhados com ele, de alguma forma; e diz que manter as
chaves tinha um significado especial; talvez os donos voltassem... Talvez, ele fosse o guardião das chaves, das histórias dos donos... Então, ele oferece uma fatia de torta e
sugere que opte por uma diferente, a que normalmente ninguém pede: a torta de blueberry. Comenta que a torta de blueberry é muito gostosa, no entanto, as pessoas têm sua preferida
e nunca dão chance a ela. Chance é a
palavra. Ela sorri e aceita uma fatia da torta sugerida. Ela come e mostra-se
surpresa ao experimentar aquele sabor naquele instante. Então, ela pergunta a
ele se não vai comer também da torta de blueberry. Ele diz já ter feito sua escolha, e mostra a
ela a torta escolhida, que não está exposta. Ele come não um pedaço, mas direto
do prato da torta, Juntos comem cada um, suas tortas como se buscassem algo. A
cena (take) da apresentação das tortas é uma mistura de cores e texturas envolventes. Dá
vontade de comer junto com eles. Usando as tortas como metáforas da vida, ele
fala de nossas escolhas, do quanto, por vezes, o agir é automático, sem
valorizar o instante presente. E do quanto podemos perder oportunidades que
fariam toda a diferença. Nesse momento, o espectador e a personagem de Jones,
lentes da câmera, percebe claramente que o dono do lugar tem sua chave no vaso
também. Pausa. Continuam comendo.
A protagonista vai mais
vezes ao local para conversar com o dono do bar e restaurante, e comer da fatia
de torta de blueberry. E mais vezes.
E numa dessas vezes, ele a observa dormindo com a cabeça sobre o balcão, depois
de ter comido muitas fatias de torta, e lhe rouba um beijo. Outra noite, os dois
comem cada um, de suas tortas. Parece haver cada vez mais cumplicidade. Ela
poderia ter roubado-lhe um beijo naquele instante... No instante seguinte, ela
diz a ele que está mudando de cidade, que precisa viajar; e deixa sua chave
para ser depositada no vaso. Ela agradece pelas noites e pelas fatias de torta.
Vai embora e promete que manterá contato.
Ela chega numa cidade e começa
a trabalhar como garçonete em dois lugares, Seu pensamento é juntar dinheiro
para comprar um carro. Vai conhecendo pessoas e suas histórias e vai se
envolvendo no instante delas. As histórias e suas personagens reais parecem se
entrelaçar, dando forma e sentido ao próprio momento, naqueles instantes,
fechando na imagem (take) que agora conseguia ver.
Ela retorna ao café,
senta-se e olha para o vaso, que está vazio de chaves, agora com flores. O dono do
local fica feliz ao vê-la. Ela retoma do ponto que partiu. Pede a torta de
blueberry. Ali, sabemos, nós espectadores e personagens, que algo bom acontecia.
Nesse instante, o filme termina, sem
final feliz ou final esperado, afinal, como personagens reais, do mundo real,
não há como interferir impondo-lhes nossos desejos.
Assinar Postagens [Atom]